9 de mar. de 2012


Voltando pela estrada

Quanto tempo uma lembrança pode permanecer viva e intacta em nossa memória? Lembro-me do exato instante em que meu tio virou-se para nós, sentados no banco de trás do carro, e disse para não encostarmos naquele cano, que estava muito quente.Vinte e cinco anos depois me lembro do Volks azul que havia acabado de perder a ponta do escapamento num ressalto da estrada de terra – chamávamos os agora Fuscas de “Volks”: uma forma que indicava um respeitoso carinho pelo carro. Além da nostalgia de seu azul, lembro-me de seus muitos detalhes cromados, dos bancos arredondados, do grande volante bege com aquelas ondulações todas para os dedos do motorista e, mistério insolúvel, um enigmático emblema no centro. Naquele momento, nada poderia combinar mais com as montanhas de Minas que nossa infância, que ia ali no banco de trás. As curvas verdes do relevo e o azul do carro, o céu e a estrada.

Daria uma fortuna para presenciar novamente hoje aquele momento. Explicando melhor: não voltar o tempo, mas sim estar lá invisível, como um adulto do ano de 2003; ouvir o que dizíamos e observar o olhar daquelas crianças. Talvez exatamente por isso o olhar de minha filha, viajando no de carro conosco, emocione tanto: aos dois anos ela parece sonhar encantada com as lembranças de um amanhã que ainda não existe.

Naquele tempo sabíamos muito pouco de tudo; facilmente coisas comuns se tornavam inesquecíveis. Adorava o monte de curvas que a lataria do carro possuía; nenhum outro era assim. Do teto forrado com um tecido cheio de bolinhas. Detalhes que, sem nenhuma razão aparente, cativavam a atenção e o olhar de uma criança. Com o passar dos anos descobri a distante origem do carro e seus detalhes técnicos. Um fascínio racional e adulto: o autor do projeto, o início de sua produção, o sistema de refrigeração a ar, o motor traseiro... Passados tantos anos, percebo que minha vida, como provavelmente a de muitas outras pessoas, foi ilustrada com a presença de algumas centenas ou milhares de Fuscas. Que o mesmo carro, que nos levava até a fazenda de meu tio, permanece a alcance dos olhos adultos de hoje.

Como pouquíssimos outros carros no mundo, o Fusca deixou de ser apenas um carro e como que passou a fazer parte das cores e da paisagem das coisas comuns. Quase que da mesma forma como a vida cotidiana tem ao seu redor árvores, esquinas, casas, etc, milhares de Fuscas passaram a fazer parte da vida e da memória de muitas pessoas. Certamente vem daí o carinho que por ele têm seus muitos admiradores. O mesmo sentimento que vejo agora em minha filha, com seus dois pequenos anos de idade. Ela talvez esteja agora sentindo e tentando entender outros azuis, outras montanhas e outros sentidos que apenas seus olhos de criança serão capazes de guardar em segredo.

Escrito por Fábio Viana Ribeiro.

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